Carol de Freitas
O bairro de Brotas mudou um tanto desde que Hector Julio Páride Bernabó, apelidado por si mesmo, aos oito, de Carybé, pisava pela última vez na casa que comprou em 61 para viver com Nancy e os dois filhos. Era 1997 quando saiu para mais uma obrigação no Ilê Axé Opô Afonjá, de onde não mais retornaria. Na ladeira de um dos bairros mais habitados da capital baiana, ainda hoje resiste, da mesma forma que deixou o artista, sob o cuidado da família Bernabó e do Instituto Carybé, um espaço onde estão guardadas suas mais valiosas memórias.
Entre elas, telas, rascunhos, esculturas, pincéis ainda manchados de tinta, anotações de viagens, livros dedicados, presentes e uma infinidade de objetos do artista plástico quiçá com mais assinaturas em painéis de todo o mundo. Nascido na Argentina, criado na Itália, morador do Rio de Janeiro durante aproximadamente doze anos e inquieto viajante, foi na Bahia, aos 39 anos, que descobriu o chão ao qual pertencia. E é a Bahia a maior homenageada em toda sua coleção artística ao longo da sua existência.
A casa em que habita o Instituto Carybé, responsável pela manutenção, cuidado e divulgação da sua obra, é mantida por recursos próprios da família. “Ao longo do tempo, uma ou outra iniciativa acaba trazendo um patrocínio como contrapartida. Temos como exemplo o centenário de Carybé, que montamos uma exposição no Solar Ferrão e trouxemos para cá, junto com o IPAC, a museóloga Janete Freitas, na companhia de mais dois profissionais, para fazer o arrolamento das obras”, conta Gabriel Bernabó, neto do artista.
O ateliê, construído em um cômodo um pouco mais alto no jardim da residência, permanece intacto. Era ali que Carybé dedicava a maior parte do seu tempo entre criações, leituras e conversas. É ali também onde guardam o último material artístico que utilizava antes da sua passagem. Sua paleta de cores, o cavalete com um esboço feito a carvão, pincéis de todos os estilos e tamanhos, pratos com mesclas de tintas e bisnagas coloridas. O artista trabalhava em 19 quadros antes da sua passagem.
O espaço chama atenção pela quantidade de livros que ele guardou. Parte de uma prateleira longa, no acervo, é reservada às obras que têm alguma ligação com Carybé. Muitas levam seus desenhos nas capas, como alguns livros de Jorge Amado, outras guardam ilustrações internas, e há também aquelas que foram escritas pelo próprio artista, a exemplo do livro “Iaba”, recuperado e lançado pela família em 2012. Entre as preciosidades, um título de Mario Vargas Llosa assinado pelo autor e dedicado a ele, uma coleção argentina de luxo de “As Mil e Uma Noites” ilustrada pelo próprio Carybé, e a obra, em português, de Gabriel García Marquéz, da Editora Sabiá, também contendo desenhos do artista.
Para Gabriel Bernabó, que conviveu com o avô até seus 26 anos, não há, no espaço, uma definição de algo que tenha mais importância para a família. Na sua memória afetiva, essa é a casa onde filhos e netos brincavam, jogavam bola, tomavam banho de piscina e recebiam cócegas do avô. “Na época existiam buracos de um metro por um metro para compostagem, onde se jogava resto de frutas, cascas… Ele nos jogava lá dentro para brincar. Isso aqui, pra gente, tem um grande significado”, recorda. Na área da piscina, construída para o tratamento de enfisema pulmonar do seu avô, uma churrasqueira leva os azulejos desenhados pelo próprio artista, lembrando aqueles que presenteou os amigos Jorge Amado e Zélia Gattai para a Casa do Rio Vermelho.
No plano do Instituto está a transformação do espaço, futuramente, em um museu-casa de Carybé, com visitação aberta ao público e exposição virtual, no intuito de mostrar onde e como viveu o artista na capital baiana. Para isso, é preciso modificar a natureza do lugar, a fim de tornar impossível o acesso tátil às suas obras e o manuseio de objetos pessoais. “Até o momento estúdio Carybé é um espaço onde recebemos, controladamente, pesquisadores, estudiosos, jornalistas e alguns interessados que entram em contato com antecedência”, revela.
O passeio pelo espaço, na companhia de Gabriel, é leve e alto astral, bem como costumam definir seu avô em declarações e depoimentos daqueles que viveram em sua companhia. Enquanto conversamos, alguns profissionais se movimentam em benefício da preservação e manutenção do lugar, carregando caixas, obras e materiais de limpeza. “Quem é do candomblé diz que quem faz o axé dessa casa é ele. Por isso que as coisas não viram pó. Ele está aqui, essa é a casa dele. O que tem de mais importante aqui? Carybé. Não no sentido aprisionado, de alma penada. Muito pelo contrário”, completa.
No pedaço de chão de Brotas onde viveu e trabalhou Carybé é possível experimentá-lo bem de perto. Mas a preservação da sua memória está para além das cores que podemos enxergar em suas várias obras de artes espalhadas países afora. Está na coragem do homem que dormiu em praias, praças e portos da velha São Salvador quando faltou dinheiro para voltar à Argentina. Está nos encontros pelo caminho ao redor do mundo e no apreço por essa gente simples que dá o tom e a cor da Bahia. Está por trás de seus traços finos, escondida entre o nanquim e o guache, e à frente de seus olhos despidos de amarras e prontos de sabedorias para olhar além do que se é capaz de ver.
Fotos: James Martins.
Matéria original do antigo site Saravá Cidade, 2018.
O seu endereço de e-mail não será publicado
Campos obrigatórios serão marcados com *